EU ♥ CAMELÔ, por Ophélia Patrício Arrabal

sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

EU ♥ CAMELÔ

Ambulante, aquele que anda, que não permanece no mesmo lugar; que vai de terra em terra, ou de rua em rua; ambulativo, errante, erradio. Camelô, mercador que vende suas mercadorias nas ruas, geralmente nas calçadas ou nas praças, ou em cidades como o Rio de Janeiro, nas areias da praia. Ambulantes ou camelôs trafegam a pé pela paisagem da cidade, deambulam com seus multi-múltiplos, com seus gritos e suas gingas, criando uma teia de comércio e comunicação informal nos espaços públicos da cidade. João do Rio dizia que o flaneur tem sempre um milhão de coisas imprescindíveis a fazer que podem ser eternamente adiadas. O camelô não. O camelô é errante porque seu destino é onipresente. Eles estão onde quer que exista quem os queira. Os ambulantes são os flaneurs da objetividade. Gritos, promoções, parábolas, repentes, digressões, rimas e cantos impulsionam seus produtos para mais longe, para onde os pés não podem alcançar. A informalidade e o improviso fazem a liga destas relações fugazes que se estabelecem com estes lojistas, que como caracóis, carregam suas lojas nas costas.

Nestes tempos de choque de ordem, de cerceamento da liberdade ambulante e criminalização do comércio informal, o OPAVIVARÁ! Lança a campanha EUCAMELÔ e bota lenha na fogueira da discussão, exaltando este devir-camelô que se esgueira no asfalto ou nas areias escaldantes, fugindo e apanhando da lei enquanto refresca a sede do PM, do gringo e do playboy. Este devir-camelô é a cidade pulsando sua vontade de contato, sua fome existencial que deságua no consumo. Ser camelô é uma atividade democrática e solidária. Em uma sociedade submersa na cultura do consumo, o comerciante informal tem o seu lugar como agente pulverizador da cultura, impulsionando, diversificando e ampliando a veiculação de produtos, objetos e informações; levando as novidades da última moda para um público muito mais extenso e horizontal.

Na atual discussão em torno das proibições sobre o comércio ambulante, o camelô incorpora uma das figuras centrais de nossa eterna luta de classes que, no Rio de Janeiro com suas especificidades históricas e geográficas, acabou por moldar uma cidade que se constrói e se destrói ao mesmo tempo sob a dialética do morro e do asfalto. É a geografia natural, orgânica e generosa das montanhas, praias e lagoas que resiste ao urbanismo cartesiano, moderno e disciplinar das avenidas, aterros e esplanadas. É a memória do Morro do Castelo a ecoar na Avenida Central, são os fantasmas da Praia do Pinto assombrando os apartamentos da Selva de Pedra. É a favela se infiltrando por entre as grades do condomínio. É o improviso e a gambiarra de um comércio corporal e humano que atravessa os cartéis dos conglomerados industriais.

Marc Ferrez fotografou vendedores ambulantes do Rio de Janeiro durante os últimos anos do século XIX, pouco antes das reformas modernizadoras, a la mode de Paris, do governo Pereira Passos. Ferrez documentou todas as transformações da paisagem carioca com um olhar tão atento ao passado que era demolido como para o futuro que se construía. Os ambulantes retratados por ele também ajudam a compor esta paisagem que se perdeu no tempo. Hoje, um Rio de Janeiro pré-olímpico, se vê novamente obcecado por uma faxina modernizadora, que busca soluções rápidas e alegóricas para se eliminar ruídos na paisagem. No início do século XX, um dos principais argumentos para a derrubada dos morros do centro da cidade, era de caráter higienista, diziam que os morros impediam a circulação de ar na cidade ajudando na proliferação de doenças como a tuberculose. Hoje, os higienistas vão às praias para dizer que os produtos e métodos de venda empregados pelos ambulantes representam riscos à saúde dos cidadãos. E assim, as políticas públicas, movidas por este espírito ascético, vão abrindo caminho para indústrias multinacionais, roubando o espaço de expressões populares, autênticas e tradicionais de nossa cultura. Nesse jogo de forças, o camelô se impõe como uma intervenção anárquica na cidade ordenada que o estado pretende, como personagem central da resistência, orgânica, rizomática, corporal e sensível da cultura popular carioca.

É pensando a exposição como uma intervenção no Shopping da Gávea que o OPAVIVARÁ! transforma a galeria em um satélite da praia e um QG de campanha. Os produtos ofertados, surgidos da intensa relação com o espaço democrático da praia, misturam design industrial com gambiarra artesanal e não são objetos distantes do público. Como na banca de um camelô, aqui tudo pode ser tocado, experimentado, sentido e, claro, comprado. As cadeiras de praia coletivas e o galão de mate com múltiplas bicas, mantêm ativos os caminhos de ambientes relacionais do grupo. A ambientação sonora funciona como dispositivo atmosférico que transforma a galeria em camelódromo auditivo, e se materializa também em CDs piratas, ou simplesmente caseiros, para se ouvir aonde quiser. Os retratos de vendedores ambulantes da praia de Ipanema, aqui não são apenas registro histórico-antropológico, são cartões postais de uma cidade que vive no limite da ilegalidade e na fragilidade de sua imagem. Tudo está a venda, em oferta, “na promoção”, com obras de arte a 1 real para não serem reféns do universo restrito do mercado de arte. Obras de arte para circular, como devem circular livremente as mercadorias de um camelô.

Ophélia Patrício Arrabal


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