Atalho contemporâneo na avenida moderna ou a crítica da razão rua

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Aclimatação: Utopia, Distopia.

Seu é a sua, nosso. A praça é nossa. A rua é nossa. A pátria é nossa. A pátria é a nossa mátria. A cidade é nossa. Praça de alimentação. O urbano como espaço. O indivíduo é formado pelo coletivo, o coletivo pelo indivíduo. O urbano é coletivo, transporte coletivo, atalho para a rua, as máquinas são formas de vida, a intervenção artística como um deslocamento do olhar, da relação dos indivíduos com o coletivo e o espaço urbano, um desvio, um atalho para outros modos de ocupação da cidade, para outros modos de relação com o espaço público. A aura é nossa. A praça com grades é patrimônio x MATRIMÔNIO, botar o bloco na rua. A modernidade criou cidades duras, pensou cidades-máquina, quis cidades concretas imortais, mas as margens do rio, degradadas, desmatadas, desbarrancadas, desgarradas invadem o próprio rio
assoreando o leito sufocando a correnteza:


o rio é rua

o tempo é um rio,

cidade inundada

enchente de gente


O determinismo cartesiano e militar da engenharia e do urbanismo moderno
passou suas máquinas esplainadoras sobre a natureza irregular e irrigada do terreno carioca. Criando assim grades de asfalto e concreto sobre rios, canais, lagoas, mangues, charcos, enseadas. Mas a água vai se infiltrando sob a cidade invadindo os esgotos, devorando as ruas.

Brasília é a cidade inexistida que precisou ser inventada.


Daqui, do centro da Pátria, levo o meu pensamento a vossos lares e vos dirijo a minha saudação. Explicai a vossos filhos o que está sendo feito agora. É, sobretudo para eles, que se ergue esta cidade síntese, prenúncio de uma revolução fecunda em prosperidade. Eles é que nos hão de julgar amanhã.

Juscelino Kubitschek - Discurso na inauguração de Brasília


São as favelosts. Apelido dado ao maior fenômeno urbano de todos os tempos, grandes aglomerações de habitação e ocupação confusa entre as megacidades (superguetos de capitalismo exacerbado na cidade terra). (...) Favelost. Não é uma favela de periferia standard, nada disso, muito além disso. (...) Em favelost não tem rua, nem avenida. É tudo alameda medieval, estreita conexão de quarteirões. Não tem carro em favelost. Só motocicleta e o metrô de popa. Metrô improvisado com barcos vindos da região dos lagos adaptados aos trilhos com um motor que senta a popa quinze pessoas em cada embarcação.(...) Serra pelada. Caixa de pandora. Arca de Noé. Faroeste barroco, favelost. Super quintal de próteses. A nova franquia social da cidade Terra. A tal, terceira bola girando em volta do forno solar.

Fausto Fawcett - Favelost


E a cidade se apresenta
Centro das ambições
Para mendigos ou ricos
E outras armações
Coletivos, automóveis,
Motos e metrôs
Trabalhadores, patrões,
Policiais, camelôs

A cidade não pára
A cidade só cresce
O de cima sobe
E o de baixo desce
A cidade não pára
A cidade só cresce
O de cima sobe
E o de baixo desce

Chico Science - A Cidade

tô com deus sou herói,
sem carteira assinada profissão motoboy,
tudo de ruim já sumiu da minha lista,
chamo no grau detono na pista,
também sou artista,
versão brasileira do motoboy paulista.
(...)
Eu levo sua pizza,entrego sua mensagem,
percorro em um segundo os quatro cantos da cidade,
observe com atenção que você vai perceber
sou cenário da cidade que não para de crescer
Marcelo Veronez - A poesia dos motoboys




fissão do moderno X contemporâneo

A contemporaneidade é o corta-caminho existencial que o ser humano pós-humano, pós super homem, pós-subhumano arranjou para fugir da encruzilhada da modernidade e seu pessimismo suicida. Uma encruzilhada sem saída como 4 becos sem saída, como uma cruz com toda a carga do pensamento cristão.






A contemporaneidade é um motoboy cortando rápido a avenida por entre os carros parados no engarrafamento da agonia moderna do apocalipse tecnológico do aquecimento global do terrorismo ecofacista.

- Quem faz o trânsito não é nóis, nóis custura!!!

- A cidade é um organismo vivo. É uma ferida incrustada na crosta terrestre, mano!!!

A crítica à modernidade perpassa por um debate sobre o retorno do teológico-político, embora o político tenha surgido justamente da separação do fazer crítico de qualquer religação divina-mágica-transcendente absoluta. A descredibilização do papel político por campanhas midiáticas, do rádio ao facebook, leva a um estado de crença. Acredita-se ou não em determinado político, assina-se ou não um abaixo-assinado com o pensamento escorado pelo gosto. Estética-estática. Cola-se um adesivo na janela do carro e ok. É a crítica à falta de embate crítico. O que é único da contemporaneidade é a possibilidade de re-significação de lógicas dialéticas ancestrais no que chamaríamos de mobilidade de sistemas. O pensamento contemporâneo tem a dinâmica de um corpo em estado físico indefinido, que ora se solidifica e em seguida se liquefaz novamente. Como uma massa de tapioca. Um biólogo ou um cientista social se parecem muito mais com um artista que se parece muito mais ainda com um confeiteiro ou um publicitário que também se parece muito com um astrólogo.


A contemporaneidade lida com a história como Ouroboros, uma serpente que come a própria cauda, é o atropelamento engavetamento de todas as eras da humanidade juntas e misturadas. Cooperação quântica alquímica. No caldo do hoje, o primitivo, o gótico ou o barroco estão tão presentes quanto o moderno, o tempo foi liberto das amarras da linearidade e pulverizado em forma de galáxia. Talvez, para nós, indivíduos comportados de uma classe letrada, formados por uma persistência das ferramentas do pensamento moderno, que não arredam o pé das academias, talvez para nós a contemporaneidade ainda se pareça com algo que pode ser chamado de pós-moderno. Mas, se nos desviarmos um pouco do nosso confortável metiê pós-graduado, perceberemos que nas ruas, para a maioria das pessoas, o universo mágico religioso de culturas orais arcaicas tribais está tão presente em seu cotidiano quanto qualquer teoria da Escola de Frankfurt.

O desejo moderno de onipotência sobre toda a cultura e toda a história foi a máquina que mais destruiu templos, valores e imagens do passado, para criar o templo hegemônico global que tem como deus o trabalho, como grande poder criador o dinheiro, e como prática religiosa a ciência e tecnologia.

Então, se por um lado, a maioria dos seres humanos nunca teve um contato direto com os conceitos determinantes da modernidade, por outro lado sabemos que através de uma absorção diluída e pulverizada desses, quase todos se curvaram à santíssima trindade moderna do trabalho pai, tecnologia filho e dinheiro espírito santo. Mas a grande carta na manga da humanidade, que permitiu a virada do jogo e a fuga da encruzilhada moderna, foi que o trabalho, a tecnologia e o dinheiro começaram a dar sinais de falência antes de se completar a catequese total da humanidade. Ou seja, a vida ainda cresce, se multiplica e se diversifica mais rápido que a capacidade de captura e adestramento do aparelho moderno capitalista. E então, quando em meados do século XX, a modernidade começa a perceber que vazamentos, glitches e bugs são muito maiores que sua capacidade de orquestração e controle, ela deixa de ditar as regras e começa a correr atrás da humanidade, tic tac, tic tac, tic tac, construindo um discurso baseado na idéia de que um matrix ciborg teria capacidade infinita de assimilar tudo que é externo a ele, de reverter todas as forças contrárias a seu favor. Mas isso cria uma espécie de doença auto-imune no sistema, uma obesidade mórbida que acaba por inchá-lo de tal forma que se torna insustentável. E do meio desse tumor começam a brotar linhas e novos espaços salutares, por onde saltam os motoboys da selvageria pós-sub-humana!

O moderno teve a pretenção de ser pra sempre. Mas como já disse o poeta o pra sempre sempre acaba. Ou como diz a Mamãe Coruja, pra sempre é muito muito tempo e o tempo tem seu jeito de mudar as coisas.

Com o distanciamento que vamos tomando do século XX, percebemos que a contemporaneidade é um caldeirão de multitudes onde o moderno com todo seu elenco é apenas mais um ingrediente da sopa e não o caldo que costura tudo. Ele já passou, mas reluta-se nos círculos dialético-sofismais, quando na verdade estamos falando de sistemas autopoiéticos. Se o moderno teve como meta a destruição e a desconstrução do passado, o contemporâneo tem como prática a reciclagem, a reapropriação, a reocupação de todo o passado, presente e futuro. É comum ver o duelo "indivíduo x coletivo" em arenas intelectivas, embora a real oposição da multitude ou das multiplicidades seja o povo massificado.

Da situação artística urbana – um ensaio geral

A arte da contemporaneidade deve habitar a urbe de forma camuflada, ser ambígua no espaço da correria, corredor. O outdoor, artístico ou publicitário, está num lugar de contemplação que não captura mais, é como a extensão de um museu de antiguidades das últimas novidades, não desloca o olhar, é o esperado, a atualização constante tal qual o outdoor deva propor. A intervenção artística deve estar em outro lugar. Deve surpreender, pegar o público de calça arriada, envolver.

O outdoor e toda a cultura do espetáculo com grandes esculturas coloridas, luminosas, etc, se coloca do lado de fora, em um campo virtual, pois não divide nem compartilha o espaço urbano com o coletivo público de passantes que a observam. Na verdade o espetáculo acaba por excluir qualquer possibilidade de observação, contato, reflexão: recreação e introspecção; promove nos espectadores uma rápida, indolor, ascética e superficial conexão que pretende injetar uma informação simples e imperativa no inconsciente coletivo, como a picada de um veneno homeopático que aos poucos vai impregnando todo o organismo e todo o imaginário humano. Em geral essa informação se resume a:

- COMPRE!

- TER É PODER!

Por este distanciamento redirecionador, o espetáculo se caracteriza pela cultura da telecomunicação, que está sempre além dos indivíduos que a consomem, intocável como fetiche máximo baseado na promessa de um gozo infinito. Esta é a imagem fundamental de toda a publicidade, pessoas sempre felizes, limpas, saudáveis, sorridentes e retocadas com clone stampo ou healing brush da última versão do editor de imagens-luxo; uma vida perfeita proporcionada pelo poder de posse de objetos de consumo. Desta forma o espetáculo serve a economia megaindustrial como um promotor de dispositivos telecomunicativos que afastam os indivíduos uns dos outros e do espaço comum, embrulhando cada ser humano em uma bolha de segurança, em uma cabine telefônica, com várias opções de cores e motivos, com direito à crítica especializada.

O ideal ascético e o aparelho mega industrial esterilizaram e mecanizaram, programando dentro de um sistema complexo de códigos disciplinares, todas as relações entre os indivíduos. O resultado é uma vida social que tende à total intermediação de aparelhos telecomunicativos. O sistema econômico quer que toda a relação entre um indivíduo e outro se dê através de um aparelho telecomunicativo. Na transversal da telecomunicação a intervenção artística propõe o espaço envolvente, oferecendo ao indivíduo o toque e o acolhimento, e se possível a sensação festiva de estar entre amigos. O espaço envolvente deve ser um espaço experimental e lúdico, e deve necessariamente, mesmo que por um curto período de tempo, transportar as pessoas para um outro contexto, algo como a descoberta das Américas e seus povos bárbaros.

Podemos pensar também no espaço envolvente como um primeiro ato, um caminho para esta viagem, este deslocamento. Um portal quadridimensional. Pode ser como uma armadilha sem dor, uma arapuca atraente o bastante para capturar os seres humanos e se transformar numa nave e levá-los a lugares insólitos, livres, quem sabe, das redes de marionetes eletromagnéticas.

O atalho possível proposto pelas manifestações atuais de arte em espaços públicos é o da re-sensibilização, de re-socialização desses espaços e dos indivíduos e coletivos que habitam e transitam por esses espaços. As práticas de mercado transformam o espaço urbano em espaço de comércio cada vez mais loteado, cercado, murado, patrimonializado, estratificado, standartizado. Se queremos enxergar auras na contemporaneidade não precisaremos medir o número de retweets ou views do YouTube, tampouco o volume da tiragem, muito menos ver e atualizar clippings de mídia. Ela, se existe, é presentificada na afetabilidade que experiências relacionais promovem a quem quiser cooperar e inserir-se em dinâmicas sociais atípicas num espaço escolhido, sitespecificado ou não, onde há a dimensão poética destas trocas.

A multitude requer um pacto e, assim, a aura da praça é nossa.



A intervenção artística no espaço urbano deve promover uma re-significação desse espaço como espaço público, do público e para o público, deve funcionar como uma força descompartimentadora de espaços, uma ação que busque a horizontalidade social desses espaços. Dessa forma, as experiências mais contundentes e com potencial de transformação e deslocamento de pontos de vista, tanto no plano individual como na esfera social, são aquelas que promovem o contato direto, corporal, interativo, integrativo com o outro que pode ser tanto um indivíduo como um coletivo. Por isso é fundamental distinguirmos a escultura monumental da intervenção artística, pois enquanto a primeira se dirige as massas, com um discurso concluído, que só emite, não absorve nem reflete, geralmente baseado em conceitos de beleza e impacto visual na paisagem; a segunda se dirige ao seu semelhante no intuito de construir, junto com o outro que a vivencia, um diálogo que deve necessariamente se manter aberto. O receptor está no mesmo nível do emissor e por isso essas posições se tornam intercambiáveis. A intervenção deve ser aberta a interação, é permeável e por isso se constrói no processo de contato e contágio com o público, não começa nem conclui, se encontra sempre no meio, entre as coisas, inter-ser. A intervenção artística em espaços públicos funciona como um mapa 1:1 desses espaços. Um mapa aberto, conectável em todas as suas dimensões, desmontável, reversível, suscetível de receber modificações constantemente; pode ser rasgado, revertido, adaptar-se a montagens de qualquer natureza, ser preparado por um indivíduo, um grupo, uma formação social. Sua relação com o território é construída no momento do ato, a partir dos nossos desejos. Um mapa que possa separar o conceito de espaço dos mecanismos de controle, que invente para nós uma cartografia da autonomia.

Ophelia Patrício Arrabal – oparrabal@gmail.com